1 de nov. de 2012

Tragédias, mais uma vez: Deus e Sandy


Furacão Sandy em Nova York
Toda vez que uma catástrofe ou tragédia de grande proporção atinge o mundo retorna à blogosfera a questão do mal e do sofrimento dos inocentes em um mundo governado por um Deus bom e Todo-Poderoso. É o caso do furacão Sandy, que nestes dias tem causado uma enorme destruição e a morte de dezenas de pessoas nos Estados Unidos e outros países. 

De longa data o mal que existe no mundo vem sendo usado como uma tentativa de se provar de que Deus não existe, ou se existe, não é bom. E se for bom, não é todo-poderoso - esta última hipótese defendida pelo teísmo aberto.

"Onde estava Deus quando estas tragédias aconteceram?" é a pergunta de pessoas revoltadas com o fato de que centenas de pessoas boas, desprevenidas, cidadãos de bem, foram apanhados numa tragédia e morreram de forma terrível, deixando para trás famílias, filhos, entes queridos.

Eu entendo a preocupação com o dilema moral que tragédias representam quando vistas a partir do conceito cristão histórico e tradicional de Deus. Se Deus é pessoal, soberano, todo-poderoso, onisciente, amoroso e bom, como então podemos explicar a ocorrência das tragédias, calamidades, doenças, sofrimentos, que atingem bons e maus ao mesmo tempo?

Creio que qualquer tentativa que um cristão que crê que a Bíblia é a Palavra de Deus faça para entender as tragédias, desastres, catástrofes e outros males que sobrevêm à humanidade, não pode deixar de levar em consideração dois componentes da revelação bíblica, que são:

  • A realidade da queda moral e espiritual do homem 
  • O caráter santo e justo de Deus.

Lemos em Gênesis 1—3 que Deus criou o homem, macho e fêmea, à sua imagem e semelhança, e que os colocou no jardim do Éden, com o mandamento para que não comessem do fruto proibido. O texto relata como eles desobedeceram a Deus, seduzidos pela astúcia e tentação de Satanás, e decaíram assim do estado de inocência, retidão e pureza em que haviam sido criados. As conseqüências, além da queda daquela retidão com que haviam sido criados, foram a separação de Deus, a perda da comunhão com ele, e a corrupção por inteiro de suas faculdades, como vontade, entendimento, emoções, consciência, arbítrio. Pior de tudo, ficaram sujeitos à morte, tanto espiritual, que consiste na separação de Deus, como a física e a eterna, esta última sendo a separação de Deus por toda a eternidade.

Este fato, que chamamos de “queda,” afetou não somente a Adão e Eva, mas trouxe estas conseqüências terríveis a toda a sua descendência, isto é, à humanidade que deles procede, pois eles eram o tronco e a cabeça da raça humana. Em outras palavras, a culpadeles foi imputada por Deus aos seus filhos, e a corrupção de sua natureza foi transmitida por geração ordinária a todos os seus descendentes.

Desde cedo na história da Igreja cristã esta doutrina, que tem sido chamada de “pecado original”, foi questionada por gente como Pelágio, que afirmava que o pecado de Adão e Eva afetou somente a eles mesmos, e que seus filhos nasciam isentos, neutros, sem pecado, e sem culpa e sem corrupção inata. Tal ideia foi habilmente rechaçada por homens como Agostinho, Lutero, Calvino e muitos outros, que demonstraram claramente que o ensino bíblico é o que chamamos de depravação total e transmitida, culpa imputada e corrupção herdada. As conseqüências práticas para nós hoje são terríveis. Por causa desta corrupção inata, com a qual já nascemos, somos totalmente indispostos para com as coisas de Deus; somos, por natureza, inimigos de Deus e, portanto, filhos da ira. É desta natureza corrompida que procedem os nossos pecados, as nossas transgressões, as desobediências, as revoltas contra Deus e sua Palavra.

Agora chegamos no ponto crucial e mais relevante para nosso assunto. Entendo que a Bíblia deixa claro que os nossos pecados, tanto o original quanto os pecados atuais que cometemos, por serem transgressões da lei de Deus, nos tornam culpados e portantosujeitos à ira justa de Deus, à sua justiça retributiva, pela qual ele trata o pecador de acordo com o que ele merece. Ou seja, a humanidade inteira, sem exceção – visto que não há um único justo, um único que seja inocente e sem pecado – está sujeita ao justo castigo de Deus, o que inclui – atenção! – a morte, as misérias espirituais, temporais (onde se enquadram as tragédias, as calamidades, os desastres, as doenças, o sofrimento) e as misérias espirituais (que a Bíblia chama de morte eterna, inferno, lago de fogo, etc.).

A Bíblia revela com muita clareza, e sem a menor preocupação de deixar Deus sujeito à crítica de ser cruel, déspota e injusto, que ele mesmo é quem determinou tragédias e calamidades sobre a raça humana, como parte das misérias temporais causadas pelo pecado original e as transgressões atuais. Isto, é claro, se você acredita realmente que a Bíblia é a Palavra de Deus, e não uma coleção de idéias, lendas, sagas, mitos e estórias politicamente motivadas e destinadas a justificar seus autores.

De acordo com a Bíblia:

  • Foi Deus quem condenou a raça humana à morte no jardim (Gn 2.17; 3.19; Hb 9.27). 
  • Foi ele quem determinou a catástrofe do dilúvio, que aniquilou a raça humana com exceção da família de Noé (Gn 6.17; Mt 24.39; 2Pe 2.5). 
  • Foi ele quem destruiu Sodoma, Gomorra e mais várias cidades da região, com fogo caído do céu (Gn 19.24-25). 
  • Foi ele quem levantou e enviou os caldeus contra a nação de Israel e demais nações ao redor do Mediterrâneo, os quais mataram mulheres, velhos, crianças e fizeram prisioneiros de guerra (Dt 28.49-52; Hab 1.6-11). 
  • Foi ele quem levantou e enviou contra Israel povos vizinhos para saquear, matar e fazer prisioneiros (2Re 24.2; 2Cr 36.17; Jr 1.15-16). 
  • Foi ele quem ameaçou Israel com doenças, pestes, fomes, carestia, seca, pragas caso se desviassem dos seus caminhos (Dt 28). 
  • Foi ele quem enviou as dez pragas contra o Egito, ferindo, matando e trazendo sofrimento a milhares de egípcios, inclusive matando os seus primogênitos (Ex 9.13-14). 
  • Foi o próprio Jesus quem revelou a João o envio de catástrofes futuras sobre a raça humana, como castigos de Deus, próximo da vinda do Senhor, conforme o livro de Apocalipse, tais como guerras, fomes, pestes, pragas, doenças (Apocalipse 6—9), entre outros. 
  • Foi o próprio Jesus quem profetizou a chegada de guerras, fomes, terremotos, epidemias (Lc 21.9-11) e a destruição de Jerusalém, que ele chamou de “dias de vingança” de Deus contra o povo que matou o seu Filho, nos quais até mesmo as grávidas haveriam de sofrer (Lc 21.20-26). 
  • E por fim, Deus já decretou a catástrofe final, a destruição do mundo presente por meio do fogo, no dia do juízo final (2Pe 3.7; 10-12).

Isto não significa, na Bíblia, que o sofrimento das pessoas é sempre causado por uma culpa individual e específica. Há casos, sim, em que as pessoas foram castigadas com sofrimentos temporais em virtude de pecados específicos que cometeram, como por exemplo o rei Uzias que foi ferido de lepra por causa de seu pecado (2Cr 26.19; cf. também o caso de Miriã, Nm 12.10). O rei Davi perdeu um filho por causa de seu adultério (2Sm 12.14). Mas, em muitos outros casos, as tragédias, catástrofes, doenças e sofrimentos não se devem a um pecado específico, mas fazem parte das misérias temporais que sobrevêm à toda a raça humana por conta do estado de pecado e culpa em geral em que todos nós nos encontramos. Deus traz estas misérias e castigos para despertar a raça humana, para provocar o arrependimento, para refrear o pecado do homem, para incutir-lhe temor de Deus, para desapegar o homem das coisas desta vida e levá-lo a refletir sobre as coisas vindouras. Veja, por exemplo, a reflexão atribuída a Moisés no Salmo 90, provavelmente escrito durante os 40 anos de peregrinação no deserto. Veja frases como estas:

Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai, filhos dos homens... Tu os arrastas na torrente, são como um sono, como a relva que floresce de madrugada; de madrugada, viceja e floresce; à tarde, murcha e seca. Pois somos consumidos pela tua ira e pelo teu furor, conturbados. Diante de ti puseste as nossas iniqüidades e, sob a luz do teu rosto, os nossos pecados ocultos. Pois todos os nossos dias se passam na tua ira; acabam-se os nossos anos como um breve pensamento...

Não devemos pensar que aquelas pessoas que ficam doentes, passam por tragédias, morrem em catástrofes eram mais pecadoras do que as demais ou que cometeram determinados pecados que lhes acarretou tal castigo. Foi o próprio Jesus quem ensinou isto quando lhe falaram do massacre dos galileus cometido por Pilatos e a tragédia da queda da torre de Siloé que matou dezoito (Lc 13.1-5). Ele ensinou a mesma coisa no caso do cego relatado em João 9.3-4. Os seus discípulos levantaram o problema do sofrimento do cego a partir de um conceito individualista de culpa, ponto que foi rejeitado por Jesus. A cegueira dele não se deveu a um pecado específico, quer dele, quer de seus pais. As pessoas nascem cegas, deformadas, morrem em tragédias e acidentes, perdem tudo que têm em catástrofes, não necessariamente porque são mais pecadoras do que as demais, mas porque somos todos pecadores, culpados, e sujeitos às misérias, castigos e males aqui neste mundo.

No caso do cego, Jesus disse que ele nascera assim “para que se manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9.3). Sofrimento, calamidades, etc., não são somente um prelúdio do julgamento eterno de Deus; há também um tipo de sofrimento no qual Deus é glorificado por meio de Cristo em sua graça, e assim se torna, portanto, um exemplo e um prelúdio da salvação eterna. As tragédias servem para levar as pessoas a refletir sobre a temporalidade e fragilidade da vida, e para levá-las a refletir nas coisas espirituais e eternas. Muitos têm encontrado a Deus no caminho do sofrimento.

O que eu quero dizer é que, diante das tragédias e  acidentes devemos nos lembrar que eles ocorrem como parte das misérias e castigos temporais resultantes das nossas culpas, de nossos pecados, como raça pecadora que somos. Poderia ser eu que estava entre as vítimas do furacão Sandy. Ou, alguém muito melhor e mais reto diante de Deus. Ainda assim, Deus não teria cometido qualquer injustiça, ainda que todas as vítimas fossem os melhores homens e mulheres que já pisaram a face da terra. Pois mesmo estes são pecadores. Não existem inocentes diante de Deus, Bonfim. Pensemos nisto, antes de ficarmos indignados contra Deus diante do sofrimento humano.

Por último, preciso deixar claro duas coisas.

Primeira, que nada do que eu disse acima me impede de chorar com os que choram, e sofrer com os que sofrem. Somos membros da mesma raça, e quando um sofre, sofremos com ele.

Segunda, é preciso reconhecer que a revelação bíblica é suficiente, mas não exaustiva. Não temos todas as respostas para todas as perguntas que se levantam quando uma tragédia acontece. Não conhecemos a vida das vítimas e nem os propósitos maiores e finais de Deus com aquela tragédia. Só a eternidade o revelará. Temos que conviver com a falta destas respostas neste lado da eternidade.

Mas, é preferível isto a aceitar respostas que venham a negar o ensino claro da Bíblia sobre Deus, como por exemplo, especular que ele não é soberano e nem onisciente e onipotente. Posso não saber os motivos específicos, mas consola-me saber que Deus é justo, bom e verdadeiro, e que todas as suas obras são perfeitas e retas, e que nele não há engano.

[Este post foi baseado num outro post da minha autoria aqui no blog intitulado Carta a Bonfim: Deus e as Tragédias]

Por ocasião dos 495 anos da Reforma Protestante



[Este artigo é de autoria do Solano Portela, que está em Manaus, sem internet - publico aqui a pedido dele]
Martinho Lutero
Muitas referências atuais à Reforma do Século 16 distorcem o que realmente ocorreu naquela ocasião. Os livros de história contemporâneos, por exemplo, introjetam anacronicamente uma linguagem marxista ultrapassada para descrever os acontecimentos da época. Para esses autores, o que houve foi uma luta econômica da burguesia contra os senhores feudais. O trabalho de Calvino é apresentado como sendo uma valorização sócio-econômica de alguns, que seriam definidos como "os predestinados". Para outros, a revolta de Lutero foi uma questão meramente pessoal, contra os líderes da época; ou, no máximo, uma cruzada contra a corrupção.

Não podemos compreender a Reforma assimilando esse revisionismo histórico. A ação de Lutero foi uma revolta contra uma estrutura errada e uma doutrina errada de uma igreja que distorcia a Salvação. Não foi um movimento sociológico, apesar de ter tido consequências sociológicas. Lutero não pretendia ensinar a salvação do homem pela reforma da sociedade, mas compreendia que a sociedade era reformada pelas ações do homem resgatado por Deus. Na realidade, a Reforma do Século XVI foi um grande reavivamento espiritual, operado por Deus, que começou com a experiência pessoal de conversão de Lutero.

Nunca é demais frisar que Lutero não formulou novas doutrinas, ou novas verdades, mas apenas redescobriu a Bíblia em sua pureza e singularidade. As 95 Teses, pregadas na porta da catedral de Wittenberg, em 31.10.1517, representam coragem, desprendimento e uma preocupação legítima com o estado decadente da igreja e com a procura dos verdadeiros ensinamentos da Palavra. É, portanto, um erro acharmos que a Reforma marca a aparição de várias doutrinas nunca dantes formuladas. A Palavra de Deus, cujas doutrinas estavam soterradas sob o entulho da tradição, é que foi resgatada.

Uma das características comuns das seitas é a apresentação de supostas verdades que nunca haviam sido compreendidas, até a aparição ou revelação destas a algum líder. Estas “verdades” passam a ser determinantes da interpretação das demais e ponto central dos ensinamentos empreendidos. A Reforma coloca-se em completa oposição a esta característica. Nenhum dos reformadores declarou ter “descoberto” qualquer verdade oculta, mas tão somente apresentou em toda singeleza os ensinamentos das Escrituras. Seus comentários e controvérsias versaram sempre sobre a clara exposição da Palavra de Deus, abstraindo dela os ensinamentos meramente humanos.


O grande escritor Martin Lloyd-Jones nos indica “que a maior lição que a Reforma Protestante tem a nos ensinar é justamente que o segredo do sucesso, na esfera da Igreja e das coisas do Espírito é olhar para trás” (Rememorando a Reforma, p. 8). Lutero e Calvino, diz ele no mesmo local, “foram descobrindo que estiveram redescobrindo o que Agostinho já tinha descoberto e que eles tinham esquecido”.

Assim, as mensagens proclamadas pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma forma como a Palavra de Deus sempre é atual e representa a Sua vontade ao homem, em todas as ocasiões, a Reforma do Século 16, com a doutrina proclamada extraída e baseada nesta Palavra, transborda em atualidade à cena contemporânea da igreja evangélica, quando nela ocorrem tantas distorções e tantos ensinamentos meramente humanos. Celebremos os feitos de Deus na história e, neste 31 de outubro, vamos dar graças a ele por ter levantado homens valorosos que não tiveram receio de se colocar ao lado da Sua Palavra.

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