De vez em quando leio em algum lugar gente reclamando que eu fico ressuscitando defunto ao criticar os liberais. “O liberalismo teológico já morreu,” dizem eles, “não há mais liberais hoje”. A acusação implícita é que eu teimo em manter viva a polêmica entre o fundamentalismo e o liberalismo teológico do início do séc. XX nos Estados Unidos que já faz parte de uma história vencida e passada.
Bom, para mim o liberalismo teológico está bem vivo, sim, em nossos dias e no Brasil. Deixe-me explicar.
1. Como movimento acadêmico, teológico e filosófico, o liberalismo de fato já terminou historicamente – fato este nunca desconhecido e muito menos negado por mim. Já em 2007 eu escrevi um post, “O Retorno de Pé na Cova,” comentando o renascimento do velho liberalismo nas academias teológicas brasileiras.
Vejam o que escrevi em outro post, desta feita sobre o barthianismo:
“Após a Reforma, durante os séculos dezessete e dezoito, a Igreja protestante foi largamente influenciada por idéias originadas do Iluminismo. O racionalismo desejava submeter todas as coisas ao crivo da análise racional. Lentamente a razão humana começou a triunfar sobre a fé. O filósofo L. Feuerbach tentou transformar a teologia em antropologia, dizendo que tudo que se diz sobre Deus, na verdade, é dito sobre o homem. Ele influenciou grandemente K. Marx, S. Freud, R. Bultmann eF. Schleiermacher. Esse último desvinculou a fé cristã da história e da teologia, reduzindo a experiência religiosa ao sentimento de dependência de Deus. Somente depois ficaria evidente que era impossível construir uma teologia em cima de um terreno tão subjetivo, mas na época, e por mais de um século, Schleiermacher foi seguido por muitos e sua influência continua até hoje.
Na mesma época, surgiu o método histórico-crítico de interpretação da Bíblia, que negava a inspiração divina de seus livros e tratava-a como meros registros humanos falíveis e contraditórios da fé de Israel e dos primeiros cristãos. A confiança na Bíblia foi tremendamente abalada.
Esses desenvolvimentos dentro da Igreja e o movimento que surgiu associado a eles foi chamado de liberalismo. O liberalismo tinha uma perspectiva elevada do homem e acalentava a esperança de que o Reino de Deus poderia ser implantado nesse mundo mediante os novos conhecimentos científicos e tecnológicos trazidos pelo Iluminismo. Com isso, o Evangelho perdeu a sua exclusividade e força. A Igreja começou a secularizar-se, particularmente na Europa.
Então veio a I Guerra Mundial. As esperanças do liberalismo teológico e do humanismo em geral foram esmagadas. Perplexidade e confusão dominaram os cristãos da Europa. Surge a teologia da crise”.
Portanto, fica claro que faço a distinção entre o liberalismo teológico como movimento histórico – este, sim, já acabado – e o liberalismo teológico como conjunto de idéias, pressupostos e convicções sobre a Bíblia e a teologia. Este último está vivinho, sim...
2. Essas idéias do liberalismo teológico continuam presentes e sendo defendidas em sala de aula por pastores, professores e teólogos. Se não vejamos. Segue abaixo uma relação de algumas destas idéias:
- O sobrenatural não invade a história. Milagres não acontecem como fatos no tempo e no espaço, mas são explicações ou projeções das pessoas na tentativa de descrever suas experiências ou entender Deus.
- A história se desenrola numa relação natural de causas e efeitos.
- Milagres como o nascimento virginal de Cristo, os milagres que o próprio Cristo realizou, sua ressurreição física dentre os mortos, os milagres do Antigo e Novo Testamentos nunca aconteceram na história. No máximo, na heilsgeschichte(história santa, ou história salvífica), diferente do mundo da história bruta, real, factível.
- Temas como criação, Adão, queda, milagres, ressurreição, entre outros, pertencem à história salvífica e não à história real e bruta. Adão e Eva não foram pessoas reais.
- Não interessa o que realmente aconteceu no túmulo de Jesus no primeiro dia da semana, mas, sim, a declaração dos discípulos de Jesus que diz que Jesus ressuscitou.
- Os relatos bíblicos dos milagres são invenções piedosas do povo judeu e dos primeiros cristãos, mitos e lendas oriundos de uma época pré-científica, quando ainda não havia explicação racional e lógica para o sobrenatural.
- A Escritura contém erros e contradições, lado a lado com aquelas palavras que provêm de Deus. Nossa tarefa é tentar separar as duas coisas.
- Interpretar a Bíblia historicamente significa reconhecer que ela contém contradições. Qualquer abordagem hermenêutica deixa de ser histórica se não aceitar essas contradições.
- A Igreja Cristã se perdeu na interpretação da Bíblia através dos séculos e somente com o advento do Iluminismo, do racionalismo e das filosofias resultantes é que se começou a analisar criticamente a Bíblia e a teologia cristã, expurgando-as dos alegados mitos, fábulas, lendas, acréscimos, como, por exemplo, os mitos da criação e do dilúvio e de personagens inventados como Adão e Moisés, etc.
- O sentimento religioso é algo universal, isto é, cada ser humano é capaz de experimentá-lo. É esse sentimento que dá validade às experiências religiosas e que torna o ecumenismo possível.
3. Eles dizem que o liberalismo foi suplantado pela neo-ortodoxia, movimento que veio em seguida. Todavia, estou convencido de que a neo-ortodoxia, preservou, perpetuou e continuou algumas das principais ênfases do liberalismo teológico, especialmente o entendimento liberal quanto às Escrituras. Tratei deste assunto neste post: “A Voz é de Jacómas as Mãos são de Esaú”.
Num outro post, intitulado “Carta a Bultman,”eu escrevi o seguinte, dirigindo-me numa carta hipotética ao falecido liberal:
“Eu gostaria de poder lhe dizer que suas idéias morreram e que hoje praticamente não tem mais ninguém que seriamente as defenda. Mas, não, não posso dizer isto. Lembra do Karl Barth, que viveu na sua época, e com quem você trocou correspondências por mais de 30 anos? Vocês dois tinham muita coisa em comum, embora também diferenças. Pois é, acho que ele acabou levando a melhor, pois muitos de teus discípulos acabaram virando bartianos ou neo-ortodoxos – é assim que os chamamos – e embora falem a língua dos ortodoxos (daí o nome neo-ortodoxia) ainda conservam em grande parte aquele seu ceticismo radical para com a veracidade e historicidade do Novo Testamento. Estes neo-ortodoxos detestam ser identificados como liberais, mas ao final, não sendo realmente uma nova ortodoxia, o melhor nome para eles deveria ser neo-liberais mesmo.”
Portanto, não acho que estou ressuscitando defunto quando critico os liberais. Se liberal é quem defende aqueles pontos acima e fundamentalista é quem os contesta, então, a polêmica continua, sim. Não creio que o cerne da controvérsia entre fundamentalistas e liberais já tenha se encerrado historicamente, como querem alguns.
O curioso, entretanto, é que eles se esquecem deste argumento quanto me chamam de fundamentalista... a rigor, também não deveriam mais existir fundamentalistas hoje...
Fonte: [O Tempora O Mores]
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